Por um ensino jurídico latino-americano
Comentário ao artigo
Carvalho Veçoso, Fabia Fernandes. 2017.
Revista Derecho del Estado. 39 (diciembre, 2017), 91-117.
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Por: Miguel Calmon Dantas[1]
O ensino jurídico na América Latina precisa se desenvolver tendo em vista as questões complexas que são enfrentadas e que derivam da sua formação histórica e da composição dos seus povos. Questões como o colonialismo, o racismo, a desigualdade, a pobreza e a exclusão social[2], os efeitos das políticas neoliberais, a situação das minorias e as deficiências institucionais para instauração de Estados Democráticos e Sociais de Direito[3], dentre outras, precisam ser enfrentadas com seu devido destaque e centralidade, a fim de que sejam produzidas teorias que contemplem respostas adequadas e eficientes no âmbito do chamado Sur Global[4].
Esta preocupação não é atual, como bem registra, na seara do Direito Internacional, Fábia Fernandes Carvalho Veçoso, em estudo publicado na Revista Derecho del Estado, em que resgata e revisita “os questionamentos articulados no âmbito das cinco Conferências de Faculdades de Direito Latino-Americanas realizadas entre 1959 e 1974”, criadas, como explica a autora, com o apoio da União das Universidades Latino-Americanas[5], instituída com o objetivo de promover a cooperação acadêmica entre universidades de todo o mundo, surgindo num contexto em que era amplamente discutido o papel das universidades da região diante das teorias da modernização e do desenvolvimento. A iniciativa da autora se insere no projeto “Repensar la Educación em Derecho Internacional em América Latina” (REDIAL), de que participa juntamente com outros pesquisadores latino-americanos.
Na introdução, a autora esclarece precisamente o seu objetivo e os limites do seu estudo, que não se volta a exaurir as discussões e questões que foram travadas pelas faculdades de direito e nem verificar os resultados produzidos ao longo do tempo no ensino de direito internacional na região. Pretende, em verdade, recuperar “os questionamentos e interrogações articuladas pelos delegados participantes” para identificar a interferência e participação do direito nos projetos políticos de transformação. Essa reflexão retrospectiva seria necessária para promover reflexões inovadores sobre o ensino, a prática e a pesquisa do direito internacional.
Embora não fossem as conferências centradas no direito internacional, já se defendia as condições e possibilidade de um Direito Internacional latino-americano, sustentando a autora que revisitar as discussões viabiliza a reflexão crítica da disciplina na região no contexto contemporâneo.
A presente análise do estudo de Fábia Fernandes Carvalho Veçoso, além de expor criticamente suas reflexões e conclusões, almeja destacar a sua inserção no âmbito de um relevante contexto mais amplo, em que se sustenta o desenvolvimento de uma matriz própria do pensamento e da prática jurídica do Sul Global e, mais especificamente, da América Latina. Esse movimento é imprescindível para romper a comum prática de assimilação, reprodução e repetição acrítica de teorias e institutos jurídicos próprios do Norte Global, que são expressão do colonialismo e da colonização do saber jurídico que ainda aprisiona a reflexão dos problemas latino-americanos, resultando em ideais e teorias absolutamente disfuncionais e inapropriadas.
Como mencionado por Daniel Bonilla[6], há uma hierarquia não escrita mas firmemente enraizada nas práticas e reflexões jurídicas no que respeita à política do conhecimento jurídico e político e, neste âmbito, a investigação de obras atinentes ao Sul Global ocupa posição especialmente baixa.
Ao adentrar nos usos de textos do passado pelo internacionalista, a autora destaca a necessidade de compreensão das interações do direito internacional em suas dimensões local e internacional, questionando as suas origens europeias e imperialistas, observando que a “América Latina possui experiências passadas em matéria de direito internacional bastante ricas e complexas, mas apesar da tradição de renomados jurídicas latino-americanos”, o seu ensino tem sido substancialmente dogmático, com reprodução acrítica de doutrinas eurocêntricas e norte-americanas, como se fora politicamente neutro. Por conseguinte, perspectivas que associam história, teoria e crítica a partir do contexto local, têm difusão e aceitação bastante limitada, ressaltando a potencialidade do REDIAL de romper com tal tendência ao constituir uma plataforma acadêmica de trabalho colaborativo para internacionalistas latino-americanos, com o desenvolvimento de perspectivas de ensino e aprendizagem relacionados aos problemas concretos da região.
Um dos problemas para tanto, como reconhece a autora, seria a compreensão adequada da perspectiva crítica latino-americana do direito internacional contemporâneo, questão aberta porque o REDIAL não propõe uma definição precisa, no que insere a sensibilidade latino-americana ao longo do tempo e os novos desafios que surgiram com o século XXI, bem distintos dos que caracterizaram a segunda metade do século passado.
A autora explica que revisitar as discussões havidas nas conferências latino-americanas das faculdades de direito realizadas na segunda metade do século XX se destina a “embasar reflexões inovadoras sobre o ensino do direito internacional na América Latina”. A busca pelo desenvolvimento histórico de tais discussões é, sem dúvida, imprescindível para, a partir do presente, projetar um futuro crítico, produtivo e reflexivo aos problemas e desafios que se colocam não apenas para o direito internacional, mas para o Sul Global, pelo que a proposta da autora é relevante e útil para o direito em geral, rompendo com a colonização do pensamento.
Adentrando na discussão sobre ensino e aprendizagem do direito no Brasil, retrata a reflexão de San Tiago Dantas nos anos cinquenta, relacionando-a com a crise brasileira, propondo superar a aula magistral e expositiva pela análise de casos, com reconhecimento da interdisciplinaridade, relatando os estudos promovidos pela Unesco sobre o ensino universitário em várias áreas; não obstante isso, as conclusões da Primeira Conferência foram no sentido de terem sido equivocados os achados para América Latina constantes dos relatórios da Unesco.
Seguiram-se, entre 1959 e 1974, as cinco conferências com delegados de faculdades de direito latino-americanas, objetivando a integração e o compartilhamento de experiências quanto ao ensino, pesquisa e extensão universitárias, à luz do papel do direito para a promoção do desenvolvimento dos países da região, na linha desenvolvimentista defendida então adotada pela CEPAL por adoção das doutrinas de Raul Presbisch e Celso Furtado.
Em razão da inevitável repercussão do regime institucional sobre o ensino jurídico, percebe a autora que o advento de regimes autoritários em vários países prejudicou a implementação das reformas aprovadas nas conferências, sobretudo nas universidades públicas, diretamente afetadas pelo viés autoritário, ao qual não interessa que a reflexão jurídica avence sobre os problemas institucionais e as questões específicas da América Latina.
A autora realiza uma síntese dos trabalhos e atividades desenvolvidos nas conferências, retratado numa tabela indicativa dos temas gerais, que variaram desde a síntese histórica do ensino do direito, passando pela missão das faculdades de direito e a docência nas faculdades, com crítica intensa da aula magistral e expositiva.
Verifica-se que os temas transcenderam o âmbito do direito internacional e sempre tiveram em vista a função do ensino jurídico para o desenvolvimento latino-americano a partir dos problemas vivenciados, como se depreende da Declaración de Princípios sobre la Enseñanza del Derecho (Ciencias Jurídicas y Sociales) em América Latina, que resultou de ampla discussão em todos os encontros, sendo proposta na primeira Conferência.
Pela Declaração, as faculdades de direito da América Latina têm uma função de investigação, ensino e difusão dos sistemas jurídicos que visem a contribuir à formação de uma consciência coletiva fundada na dignidade, na justiça, na democracia, na paz e na liberdade, viabilizando a justiça social e o bem-estar, e formação de um pensamento filosófico próprio; daí se compreende bem a razão dos regimes autoritários terem prejudicado a implementação dos resultados das conferências, com repercussões até a atualidade.
Cabe destacar, ainda, da exposição da autora acerca de cada conferência, a reflexão sobre as questões pedagógicas, acentuada no terceiro encontro, no Chile, sob a perspectiva de uma pedagogia jurídico-social. Já no encontro de Montevidéu, que foi o quarto, ressalta Fábia Fernandes Carvalho Veçoso a busca por objetivos que indicariam a construção do que poderia vir a ser um espaço latino-americano comum de ensino jurídico, com análise dos planos de ensino das matérias obrigatórias e eletivas, definição uniforme da duração do curso de direito (cinco anos) e as carreiras de professor e pesquisador, além da formação cultural e assistência pedagógico-social dos estudantes.
Certamente, pelo que expõe a autora, houve na América Latina, durante essas conferências, guardadas as peculiaridades, o contexto e a reflexão específica dos problemas latino-americanos, processo próximo ao que se desenvolveu na União Europeia em torno do chamado processo de Bolonha[7], que almejou a construção de um espaço europeu comum de educação superior. No caso da América Latina, mais do que um espaço comum de ensino jurídico, propunha-se a constituição de uma rede que propiciasse um pensamento comum entre juristas latino-americanos a partir da sensibilidade compartilhada quanto aos problemas da região e o papel das universidades.
A última conferência, em Córdoba, em 1974, a percepção e a discussão do papel transformador das faculdades de direito já foram bastante prejudicadas pelas ditaduras que já eclodiam na região.
Na sequência, a autora observa que, mesmo depois das conferências, as questões que lhes deram ensejo continuaram a merecer reflexão na região, mas revisitar as conferências permite a continua indagação acerca das condições e possibilidades para “re-imaginar o ensino e a pesquisa do direito internacional” e, em verdade, de todo o direito, sobretudo pelo entrelaçamento deste direito internacional engajado e comprometido com os problemas históricos latino-americanos e o novo constitucionalismo latino-americano[8], como uma das expressões do constitucionalismo do Sul Global.
A reflexão de Fábia Fernandes Carvalho Veçoso se destaca por revisitar tão importante movimento ocorrido em período tão fértil para os movimentos sociais e o desenvolvimento latino-americano, abafado e contido pelos regimes ditatoriais, cujos efeitos deletérios são percebidos até hoje.
A acurada análise das perspectivas do ensino jurídico latino-americano ocorrida no período das conferências continuam a ser uma necessidade atual e constante, sobretudo pelo advento de novos riscos e situações que potencializam as fragilidades da região e acentuam os seus problemas, potencializados durante a pandemia da Covid-19.
Neste sentido, o artigo ora comentado é um convite aberto à reflexão e ao engajamento quanto ao pensar num ensino, pesquisa e extensão jurídicas que sejam originariamente latino-americanos e que situem o direito quanto a sua capacidade de promover a transformação social e a justiça, condições para o desenvolvimento regional.
[1] Doutor e Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Coordenador do Curso de Direito e Professor Titular da Universidade Salvador (Unifacs). Professor do Programa de Pós-graduação em Direito, Governança e Políticas Públicas (stricto sensu). Professor Associado da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor Adjunto da Faculdade Baiana de Direito. Procurador do Estado e Advogado.
[2] Questões especialmente centrais para a América Latina e, também, para o chamado Sul Global.
[3] Como salienta Eduardo Galeano, “o bem-estar de nossas classes dominantes – dominantes para dentro, dominadas para fora – é a maldição de nossas multidões, condenadas a uma vida de bestas de carga”, destacando, ainda, que o passar do tempo apenas acentua a desigualdade, considerando que o suposto “desenvolvimento desenvolve a desigualdade”. Galeano, Eduardo. Veias abertas da América Latina. São Paulo: L&PM, 2010.
[4] Adota-se o sentido de Sul Global e Norte Global indicado por Daniel Bonilla, entendidos como países centrais e desenvolvidos e países periféricos e em desenvolvimento, respectivamente. Bonilla, Daniel. Hacia um Constitucionalismo del Sur Global. In.: Bonilla, Daniel. Constitucionalismo del Sur Global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2015.
[5] Como esclarece no texto, sua denominação atual é União das Universidades da América Latina e do Caribe (UDUAL).
[6] Bonilla, Daniel. Hacia um Constitucionalismo del Sur Global. In.: Bonilla, Daniel. Constitucionalismo del Sur Global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2015.
[7] Lima, Licínio C., Azevedo, Mário Luiz Neves de e Catani, Afrânio Mendes. O processo de Bolonha, a avaliação da educação superior e algumas considerações sobre a Universidade Nova. Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior (Campinas) [online]. 2008, v. 13, n. 1 [Acessado 29 Novembro 2021] , pp. 7-36. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1414-40772008000100002>. Epub 02 Abr 2008. ISSN 1982-5765. https://doi.org/10.1590/S1414-40772008000100002
[8] Gargarella, Roberto, ‘El constitucionalismo latinoamericano’ in Daniel Maldonado Bonilla, El constitucionalismo en el continente americano (Bogotá, Siglo del Hombre, 2016).
Para citar: Miguel Calmon Dantas, “Por um Ensino Jurídico Latino-Americano” en Blog Revista Derecho del Estado, 10 de agosto de 2022. Disponible en: https://blogrevistaderechoestado.uexternado.edu.co/2022/08/10/por-um-ensino-juridico-latino-americano/