Facultad de Derecho

O ‘cancelamento’ é um direito?

Bruno Camilloto. Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Ouro Preto, MG, Brasil.

Doutor em Direito pela PUC/MG. Mestre em Direito pela UFMG. Bacharel em Direito pela UFOP. Professor do PPGD da UFOP.

 

Pedro Urashima. Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Ouro Preto, MG, Brasil.

Mestrando em direito no programa “Novos direitos, Novos sujeitos” da Universidade Federal de Ouro Preto e bolsista CAPES. Bacharel em direito pela Universidade Federal de Lavras.

 

Os cidadãos têm o direito de cancelar as personalidades públicas? Ou, de outra forma, as personalidades públicas possuem o direito de não serem canceladas? Essa é uma questão que está posta nas sociedades liberais democráticas contemporâneas. No texto Liberdade de expressão, democracia e cultura do cancelamento[1] apresentamos o argumento de que a cultura do cancelamento pressupõe uma concepção normativa de cidadania democrática dependente de um ideal de tolerância. Naquele artigo analisamos o cancelamento a partir de dois casos: o primeiro, nos EUA, versa o debate público em torno da carta aberta publicada na Harper’s Magazine. O segundo trata da publicação de resenha do álbum visual de Beyoncé (Black Is King) pela intelectual brasileira Lilia Schwarcz. Neste ensaio desenvolveremos o argumento de forma mais geral e a partir de algumas considerações entre os termos liberdade de expressão, democracia e cancelamento.

 

No sentido que o termo tem ganhado contornos nas redes sociais, a cultura do cancelamento é uma manifestação de opinião que significa a retirada do apoio a uma personalidade pública (por exemplo, a um artista, a um político, a uma empresa/um produto ou uma celebridade) em razão da desaprovação de algum comportamento ou posicionamento realizado pelo cancelado. O termo foi eleito pelo Dictionary Macquarie como o termo do ano em 2019.

 

O uso atual do termo ‘cancelar’ ainda não tem origens muito conhecidas. Uma reportagem da Vox[2] sugere algumas possibilidades de como o termo surgiu com esse sentido nos Estados Unidos. A primeira hipótese é de que o uso em questão vem de uma piada misógina do filme A Gangue Brutal (1991). Nele, o personagem Nino Brown, representado por Wesley Snipes, diz em resposta à sua namorada, que está frustrada pela violência que ele causa: “Cancel that bitch. I’ll buy another one.” Outra possibilidade é a popularidade de um meme no qual integrantes do reality show Love and Hip-Hop: New York, transmitido em dezembro de 2014 na VH1 estadunidense, brigam, e em dado momento um fala para o outro: “você está cancelado”. Independentemente de qual seja a origem de fato, a reportagem prossegue, o termo teria se popularizado na comunidade afro-americana do Twitter, para se referir a algum comportamento desagradável por parte de alguém próximo. Depois, passou a ser usado para se referir a pessoas públicas e instituições.

 

No sentido que usamos no texto publicado, o cancelamento é a manifestação de uma opinião que possui engajamento em torno de um tema, situação ou pessoa e está relacionado com o direito à liberdade de expressão.[3]

 

Se, por um lado, é difícil dizer precisamente quando a cultura do cancelamento começou, por outro, é possível contextualizar a utilização do termo por meio de ações práticas no ambiente social. A partir da comunicação nas redes sociais temos uma “nova partilha discursiva”[4] na qual há a ampliação de quem pode participar dos debates públicos.

 

Estamos diante de uma nova cultura digital: o comentariado, composto pelos intelectuais do Youtube, do Instagram, influenciadores e formadores de opinião do Twitter. Agora, debates sobre ‘igualdade’, ‘liberdade’, ‘racismo’, ‘opressão’, dentre outros, ultrapassam o ambiente acadêmico, fazendo parte do dia a dia das pessoas que utilizam suas redes sociais para dizer qual é o sentido e uso correto/incorreto dessas e de outras tantas ideias. Surgem, então, espaços que permitem disputas de narrativas sobre os sentidos da convivência social. Além disso, a circulação de informações e opiniões nesses espaços é customizada de acordo com os interesses dos usuários. Em um ambiente político polarizado, a cultura do cancelamento surge como consequência do nosso uso dessas redes para discutir qual sociedade devemos ser ou o que não é tolerável entre nós.

 

No Brasil, desde março de 2021, o cancelamento vem dominando a pauta nas discussões diárias devido ao sucesso do reality show televisivo denominado Big Brother Brasil[5]. Nesta edição, o cancelamento foi pautado pelos participantes e está sendo atravessado por questões raciais, de gênero e de classe, produzindo um intenso debate na esfera pública, especialmente pelo comentariado.

 

As ações de cancelamento despertam muitas dúvidas quanto ao potencial da cultura do cancelamento ser uma forma de inibição da livre discussão pública. Juridicamente, essas dúvidas se apresentam como problema de compatibilidade do cancelamento com a liberdade de expressão. Defendemos que o cancelamento, como emissão de opinião, está amparado pelo direito constitucional de livre manifestação do pensamento. Portanto, o argumento formulado no texto é mobilizado dentro do contexto jurídico.

 

Duas importantes observações devem ser feitas. A primeira, é que o próprio contexto jurídico apresentado no artigo faz os devidos apontamentos em relação às limitações para o exercício da liberdade de expressão. É dizer, não defendemos que a liberdade de expressão seja ilimitada, sobretudo quando a ação de cancelar configura crimes como calúnia, injúria, difamação e racismo já previstos na legislação brasileira. A segunda, é que dependendo de como o cancelamento ocorre, ele mesmo poderá configurar uma forma de limitação da liberdade de expressão. Isso acontece quando o cancelamento desperta o receio de desaprovação nas pessoas, que deixam de manifestar sua opinião com medo de serem canceladas, especialmente de forma violenta. Por isso, defendemos que o cancelamento, como forma de manifestação pública da opinião, deve ser pautado por um ideal de tolerância.

 

Usamos a tolerância como um importante conceito filosófico que está no registro do liberalismo político. Nosso ponto de partida é o fato de que vivemos numa sociedade plural na qual cada pessoa possui um ideal de vida boa e que, muitas vezes, não é possível chegar a um acordo sobre questões básicas da própria vida, por exemplo: religião e sexualidade. Nesse registro, para que a sociedade consiga se manter politicamente organizada, preservando em seu interior a convivência de diferentes pessoas, é necessário estabelecer algum grau de tolerância em relação aos comportamentos dos diferentes indivíduos e/ou grupos sociais.[6] A tolerância permite que cidadãos discordantes sobre as questões básicas cheguem a um acordo sobre os termos de convivência política sem ônus excessivos aos seus ideais de vida boa.

 

Esse ideal de tolerância irá variar de acordo com cada organização social no tempo e no espaço. Por exemplo, nos Estados Unidos, a elasticidade do conceito de liberdade de expressão é tão grande que aquela sociedade aceita, do ponto de vista normativo, manifestações que enaltecem publicamente a suástica nazista. Na Alemanha, esse comportamento não é tolerado sendo considerado, inclusive, crime.[7] [8] Importante destacar que nas sociedades contemporâneas ocidentais o ideal de tolerância está fortemente vinculado à ideia dos Direitos Humanos.

 

Como dito, entendemos que o cancelamento apenas será compatível com a livre discussão pública se realizado a partir de um ideal de tolerância. Entretanto, não é possível afirmar que os cancelamentos que ocorrem na internet seguem algum ideal de tolerância, pois não há uma forma previamente estabelecida de cancelar, podendo os ‘canceladores’ ofertarem respostas diferentes para situações semelhantes. Portanto, derivado de manifestações por vezes voluntariosas e não orientadas por quaisquer parâmetros normativos, o cancelamento pode configurar situações de intolerância.

 

Novamente, o debate em torno do reality show televisivo BBB nos ajuda a compreender o cancelamento. Primeiro, os participantes do reality demonstraram sua preocupação com o cancelamento por parte da audiência que acompanha o programa. Em seguida, o comportamento do público reforçou a preocupação dos participantes, pois verificamos o engajamento da audiência no cancelamento dos participantes do reality, especialmente daqueles que já possuem muitos ‘seguidores’ ou alguma fama. Por fim, a reação do público no comportamento de cancelar os participantes do reality não seguiu um padrão objetivo sendo mais rigoroso com uns do que com outros, ou seja, foram mais ou menos tolerantes em situações comportamentais semelhantes.

 

Liberdade de expressão e tolerância são temas clássicos da filosofia política que implicam em consequências práticas na vida das pessoas. O direito de discordar, e de expressar a discordância publicamente, é legítimo dentro de um regime democrático que preza pelo pluralismo de ideias. Esse é um importante pressuposto da democracia. É preciso atenção pois nem toda discordância é uma ação de cancelamento e há várias formas e meios para manifestar a divergência de opiniões. Logo, se estamos falando de uma sociedade democrática e plural, então sempre deverá haver espaço para a discordância.

 

Retomando o argumento, se realizado dentro dos limites da civilidade, isto é, de acordo com um ideal de tolerância, então o cancelamento poderá ser considerado como exercício da liberdade de expressão que fomenta a discussão pública. Chamemos isso de uma discordância elegante. Por sua vez, se a ação de cancelamento violar direitos de alguém, como por exemplo a honra e imagem, então ela poderá ser considerada como uma ação violadora de direitos. Chamemos isso de um ato ilícito. Entre uma discordância elegante (uma ação totalmente permitida pela liberdade de expressão) e um ato ilícito (uma ação proibida pelo Direito), há espaço para que o cancelamento possa se apresentar na forma de uma discordância deselegante. E o que fazer quando isso acontece? Bom, neste caso, o que o artigo argumenta é que, mesmo que não endossemos a forma deselegante de manifestação da discordância, ela será legítima do ponto de vista do direito à liberdade de expressão. Afinal, “ninguém possui (…) o direito de ser aprovado por todos”[9]. E veja, admitir que a discordância deselegante seja legítima, não implica, necessariamente, em concordar nem com a forma e nem com o conteúdo dela.

 

É nesse sentido que acreditamos ser possível defender o cancelamento como forma de liberdade de expressão sem adesão ou prática desse mesmo comportamento. Rechaçar previamente a manifestação de opiniões nas redes sociais quando elas deixam de endossar ou oferecer suporte a alguém, nos parece um risco muito alto para uma sociedade plural. Na relação entre liberdade de expressão e restrição dela, a partir da ação do cancelamento, surge um trade-off que assumimos em nome da cidadania democrática.

 

[1] CAMILLOTO, B.; URASHIMA, P. Liberdade de expressão, democracia e cultura do cancelamento. Revista de Direito da Faculdade Guanambi, v. 7, n. 02, p. e317, 11 fev. 2021. Disponível em: http://revistas.faculdadeguanambi.edu.br/index.php/Revistadedireito/article/view/317

[2] ROMANO, AJA. Why we can’t stop fighting about cancel culture. Vox, 30 de dezembro de 2019. Disponível em: https://www.vox.com/culture/2019/12/30/20879720/what-iscancel-culture-explained-history-debate. Acesso em: 6 dez. 2020.

[3] O argumento não contempla a prática de linchamentos virtuais. Como não fizemos uma distinção entre os conceitos de linchamento virtual e cancelamento no texto original, não abordaremos essa distinção nesse ensaio. Apenas para fins de registro, considera-se que o linchamento virtual passa por uma ideia de justiçamento popular nas redes sociais que pode violar direitos dos cidadãos. Para aprofundamento ver: Macedo, Karen Tank Mercuri. Conflitos sociais contemporâneos: possíveis causas e consequências dos linchamentos virtuais. Revista Humanidades e Inovação v.5, n. 4. 2018. Disponível em: https://revista.unitins.br/index.php/humanidadeseinovacao/article/view/653.

[4] BENTES, Ivana. Nós, os brancos, e a nova partilha discursiva. Revista Cult, 12 de agosto de 2020. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/nos-os-brancos-e-a-novapartilha- discursiva/. Acesso em: 6 dez. 2020.

[5] O Big Brother Brasil (BBB) é a versão brasileira do reality show Big Brother. Em 2020 o programa bateu recordes de audiência sendo um dos fatores a trágica situação da pandemia do Coronavírus. Enquanto o Brasil e o mundo estavam realizando lockdown, o programa era a única atração de entretenimento que continuava ao vivo. Foi como se tivéssemos congelado todos os demais programas de entretenimento mantendo apenas o BBB em fluxo contínuo e normal. A edição de 2021 trouxe uma novidade: a participação de pessoas públicas que já possuíam algum reconhecimento público e fama. Além  disso, a edição de 2021 é aquela que já detém o recorde de audiência de todas as edições sendo que em um dos momentos alto do programa; a eliminação de um dos participantes pelo público que ocorre todas às terças-feiras; registrou recorde de audiência em relação à final do programa no ano de 2010.

[6] CAMILLOTO, Bruno. LIBERDADE: A CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE DO PLURALISMO A PARTIR DO PENSAMENTO DE RAWLS. REVISTA ELETRÔNICA DO CURSO DE DIREITO DA UFSM, v. 14, p. 31429, 2019. doi: https://doi.org/10.29293/rdfg.v7i02.317

[7] Por que é mais fácil ser neonazista nos EUA do que na Alemanha, disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-40958924 e ‘Na Alemanha ele estaria preso’: Vídeo de Alvim inspirado em Goebbels configura apologia ao nazismo, diz presidente da OAB, disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51149263

[8] Mencionamos organizações políticas e suas interpretações institucionais da tolerância enquanto valor político. Mas, vale também destacar a compreensão cidadã da tolerância e como ela influencia comportamentos de grandes corporações. Por exemplo, em Portugal, em janeiro de 2021, um participante do reality show Big Brother foi expulso do programa por ter feito uma saudação nazista. Nos parece que as regras do reality são influenciadas pela compreensão cidadã do que é ou não tolerável, que é reflexo da cultura política e institucional. Da mesma forma, o Big Brother influencia essa compreensão cidadã, sendo importante para a formação da opinião pública. Estamos falando de diferentes contextos que vêm a se relacionar em uma complexa dinâmica (Estado, cidadania e influenciadores da opinião pública), da qual a cultura do cancelamento faz parte.

[9] CAMILLOTO, B.; URASHIMA, P. Liberdade de expressão, democracia e cultura do cancelamento. Revista de Direito da Faculdade Guanambi, v. 7, n. 02, p. e317, 11 fev. 2021. Disponível em: http://revistas.faculdadeguanambi.edu.br/index.php/Revistadedireito/article/view/317